Alisamento, uma decisão individual?

Alisamento, uma decisão individual?

Por que alisamos nosso cabelo? Há várias respostas para essa pergunta, algumas até são reais, outras são argumentos que criamos para nós mesmas para acreditarmos que essa realmente foi uma decisão só nossa e não algo imposto pela sociedade.

Bell Hooks, feminista negra norte-americana, doutora pela Universidade da Califórnia, trata o tema em seu artigo “Alisando o Nosso Cabelo”. A obsessão pelo cabelo é algo que já pertence a mulher negra há muitos anos, segundo a autora, o alisamento ainda é considerado um assunto muito sério.

Ela relata a história de sua infância e seu insaciável desejo pelo alisamento que só chegaria quando tivesse idade para se tornar “mocinha”, onde deixa-se de ser uma criança e entra na fase de transição para tornar-se mulher. Na época ela não associava esse desejo ao esforço de parecer branca (percepção essa, que muitas de nós mulheres negras nunca tivemos), mas sim há um rito de passagem para se tornar mulher.

“Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. Era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras, ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto à barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo”, relembra a autora.

A tão incansável espera de Bell terminou quando sua mãe disse que era chegada a hora. “Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a minha vez”, conta a autora.

Sobre esse momento ela diz que, “para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres”. “Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo”, complementa.

Segundo a doutora, era perceptível que as mulheres negras que alisavam o cabelo eram consideradas mais bonitas do que aquelas que usavam seu cabelo natural, crespo. Esse era um padrão de beleza já estabelecido para que mulheres negras se sentissem mais atraentes.

Tendo em vista, a estrutura patriarcal e capitalista, essa postura demonstrava um racismo interiorizado, auto ódio causado pela baixa autoestima. Na década de 1960, os militantes negros pautavam a obsessão pelo cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. (Hooks, Bells, 2005, p. 2).

De acordo com o artigo, foi nesse momento que os penteados afro, e principalmente, o Black Power ganhou protagonismo como símbolo de resistência e uma celebração do ser negro.

Quando dizemos ainda hoje, que assumir o cabelo natural, representa muito mais do que parece, é exatamente disso que estamos falando. Aceitar seu cabelo é se reconectar com sua raiz e ancestralidade.

Assim como acontece agora, ocorreu também naquela época, a indústria começou a enxergar pessoas negras, especialmente, as mulheres negras, como nada mais que potenciais consumidores. Começaram a surgir outros produtos para os cabelos crespos, como o permanente, que eliminavam o uso do pente quente e da chapinha.

“O contexto do ritual havia desaparecido. (…) O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco”, conta Bell.

Ainda havia ainda a discussão sobre alisar o cabelo, comprar perucas lisas para conseguir um emprego.             “Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca”, relata a autora.

Para as mulheres negras que assumiram seus cabelos naturais era costumeiro que pessoas brancas pedissem para tocá-los, e perceptível, o olhar de espanto quando percebiam que a textura era suave ou agradável ao toque.

“Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo. O grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos gerais sobre o nosso corpo”, diz.

Mulheres negras com seus cabelos naturais não eram consideradas tão bonitas e sensuais quanto as alisadas. “(…) várias mulheres negras descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a ideia de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à ideia de essas serem desejadas e amadas”, relata a autora.

O artigo traz também outro argumento muito utilizado pelas mulheres: “essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado”.

Apesar dessa realidade, Bell Hooks assumiu seu cabelo natural e conclui: “em uma cultura de dominação e anti-intimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nós mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros. Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os que frequentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta libertadora que libera a mente e o coração”.

 

Ana Caroline Paulino

Equipe De Benguela